segunda-feira, 22 de junho de 2009

A minha última criação

"Todos os dias, à mesma hora, repetia o ritual."

Todos os dias, à mesma hora, repetia o ritual. Sentava-se no banco, no mesmo banco, onde o vira pela última vez, esperando até a noite se pôr.

"Somos aquilo que são as nossas memórias", explicava ele à mulher, sempre que esta se queixava daquela esperança fútil. "Podem tirar-me tudo, menos aquilo que trago dentro de mim". Todos eram presas das errâncias do mundo. Só aquilo que cada um gerava dentro de si, estava livre de toda a maldade que o pudesse apagar.

Os amigos avisavam-no. A mulher continuava a queixar.se, Mas para ele, isso não era um problema. Continuava a acreditar, apesar de não entender. Aliás, principalmente por não entender. "A atenção é o corpo da alma". E o Homem não fora feito para se sentir seguro. Por isso ele esperava, com a calma de quem aceita todas as dúvidas interiores.

Dissessem o que dissessem, a verdade é que não podia sair dali. Não. E se ele voltasse? Nunca se perdoaria se faltasse a esse reencontro. Tornara-se guardião da solidão do outro, à medida que aquelas conversas se foram sucedendo, todos os dias, à mesmo hora. Aquela amizade tinha-se tornado mais importante que qualquer outra coisa. Viver naquela esperança, era pensar que o futuro poderia vir a fazer sentido. Aquilo fragilizava-o, diziam-lhe os amigos. Mas para ele era exactamente o contrário. Graças àquela esperança, passara a ter uma presença real, numa vida outrora vazia. E mesmo que essa presença fosse um vulto ausente, ele continuaria a guardar um lugar, naquele banco, impedindo quem quer que fosse de se sentar nele. Não fosse ele aparecer...

"Torturas-te!", reclamava a mulher. Ele não respondia. Ela jamais entenderia o que era viver deliberadamente de ferida aberta. Naquele banco estavam todas as vidas que nunca tinha vivido. Estava o pormenor do mundo, que aprendera a ler com admiração. Estavam as subtis diferenças que mudavam cada memória, sempre que a ela voltava. No seu íntimo, tinha consciência que esse mundo recordado era inalcançável. Mas nem por isso menos possível. E por isso ele, todos os dias, à mesma hora, repetia o ritual.

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