quinta-feira, 16 de julho de 2009

Excerto do Manuscrito

Comprei uma edição manuscrita do “Banquete” de Platão. Encontrei-o por acidente num alfarrabista. Data do século XVII, a acreditar no velhinho que mo vendeu. Mas não foi por isso que o comprei. Trouxe-o porque era um dos livros que a minha mãe costumava ler. A seu modo ela acreditava em valores absolutos e verdades inquestionáveis. Eu sempre disse a mim mesmo que isso não existia, mas hoje já não tenho tanta certeza.

Cresci e fiz-me adulto a ouvir dizer que tudo era possível, logo, podia ser aquilo que quisesse. Com o esforço e a sorte certas, não há limites para a imaginação. Acredito que isso seja mais fácil de acreditar quando ainda não se fez o suficiente para deixar de acreditar, que o que nos vai definir, ainda está por vir.

Hoje estou familiarizado com termos como determinismo biológico, condicionalismo da educação, ou força das circunstâncias, que tornam certas coisas, não predestináveis, mas praticamente impossíveis de evitar ou modificar. Grande parte do que aprendi até hoje, foi em deixar no passado os momentos da vida que nele acabaram. Mas isso é uma conquista recente. Evoluí na minha maturidade quando aceitei que existe um limite a partir do qual, deixam de existir razões para justificar as coisas que nos vão acontecendo. Cansei-me de me sentir ansioso, aligeirei o peso da exigência. Pode-se dizer que não se fará um gesto enquanto não se entender o que levou coisas importantes e sólidas na nossa vida, serem reduzidas a pó, mas depois de o ter feito, o que retirei da experiência, foi um desgaste estéril.

O meu pai sempre me disse que se havia adjectivo para caracterizar a vida, era ironia. Finalmente entendo o que ele queria dizer. Ao tentar evitar uma situação, acabei precipitando o que era necessário, para que ela acontecesse.

Não sei se a solidão é uma má coisa. Sempre fui um pouco isolacionista. Conforta-me o silêncio da solidão. Um sentimento contra o qual lutei grande parte da minha vida, pois isolacionista ou não, a minha necessidade de contacto e apreciação é tão grande como a de qualquer outro. Para quem é naturalmente sociável é difícil compreender o esforço necessário para ultrapassar a exclusão. Não que tenha sido um estigmatizado, porque não fui, mas acreditei que o que tinha de fazer para o evitar, era ser o contrário do que naturalmente era. É fácil cair na tentação. Pensei que se mostrasse o quão bom conseguia ser, não haveria como não gostarem de mim.
De certo modo, não precisei dos outros. Estigmatizei-me a mim próprio, à conta da apoquentação pelo erro e da culpabilização pelo fracasso. Quantos dias não passei preocupado em estar à altura de um determinado padrão, incapaz de compreender que a aceitação tem mais a ver com o envolvimento e a sinceridade, que com a excelência e o rigor. Por cada nova tentativa falhada, por cada nova frustração emocional, fui dizendo a mim próprio que era normal. Enquanto não acertasse, não seria aceite. E a culpa seria inteiramente minha. A reprovação dos outros era um acto lógico. E com essa ridícula presunção fui-me iludindo, negando-me a mim próprio o direito de errar. Pior que isso, o direito de ser amado por isso. Neguei a mim próprio, aquilo que me fazia humano.

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