sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Episódio 22

Faz hoje 5 anos que um camião descontrolado colheu o carro do meu pai. Chovia torrencialmente, um pneu rebentou, o condutor perdeu o controlo na derrapagem, tombando e arrastando o carro para a valeta, com os meus pais lá dentro.
Foi um acidente trágico. Não só pela forma como aconteceu, mas principalmente pelo momento em que se deu. Nos últimos meses de vida, eles tinham-se reaproximado. O meu pai deixara a mulher com que vivera e motivado sei lá eu porque vontade, quis voltar para a minha mãe. A última vez que tive com ele, ao jantar, confessou-me que precisara de passar por tudo o que passara, para perceber que a minha mãe fora, como ainda era, a mulher da vida dele. Ela mostrou-se mais renitente. Estabeleceu um dia da semana para estarem juntos, mas não o deixou voltar para a casa e a sua cama, disse-me, estava interdita. Suponho que nunca lhe perdoou a traição e os anos passados não foram suficientes, para voltar a recuperar a confiança nele.
O que não a impediu de redescobrir naquela reaproximação, uma alegria que não me recordo ter visto noutros tempos. A dor que se afasta nem sempre leva consigo o amor e na que fica, algo deste permanece. Como me disse a minha mãe, redescobriram a amizade, o que para dois adultos de 50 anos é um achado notável, como frisou o meu pai, confirmando-me a reciprocidade do sentimento. Não era eu que iria separar aquilo que a vida tornara a juntar. Enterrei-os na mesma campa.
A decisão revelou-se polémica. A minha avó brasileira opôs-se, “porque o homem que abandona a mulher em vida, não merece o descanso eterno ao lado dela”. Já a minha outra avó, a paterna, discordou pela boca do filho, meu tio, que me informou que “com todo o dinheiro que o teu pai te deixou, é uma falta de respeito nem sequer lhe construíres uma campa”. Ao meu tio, pelos ouvidos da minha avó, respondi que era uma questão de simbologia emocional e não de ostentação material. À minha avó materna expliquei que o divórcio legal, não fora sinónimo de separação afectiva. Embora esclarecidos, nenhum ficou satisfeito. O que não me afectou. Nenhum deles lá estava, quando a decisão foi tomada. Nem tão pouco, quando a notícia foi recebida.
Estava sozinho em casa. Tinha chegado do trabalho havia pouco, quando o telefone tocou. Fui a correr para o hospital, para ouvir da boca do médico, o que ele tivera pudor de dizer ao telefone.
- Não havia nada a fazer, disse pesaroso. Morreram no impacto, acrescentou, como se a rapidez fosse um paliativo consolador. Do que se seguiu, confesso, não me recordo com exactidão.

Um amigo meu psicólogo explicou-me uma vez, que há certos acontecimentos tão traumáticos para o ser, que a consciência os relega para um esquecimento forçado, para proteger a integridade do organismo. Descrições técnicas à parte, lembro-me que não chorei uma única lágrima, mais pelo espanto, que pela ausência de razões. Poucas foram as vezes na vida em que me senti tão impotente. O Pedro veio ter comigo ao hospital e levou-me para asa dele. O dia seguinte, passei-o em casa da Marta, que se ofereceu para tratar da burocracia da morte. Ao terceiro dia, como está nas Escrituras, fez-se o enterro. Sem ressurreição, que o privilégio não é extensível a profetas não sancionados.
Ficaram enterrados no topo de uma colina verde, ao lado de outras campas geometricamente dispostas como um tapete, que deslizava colina abaixo. A afluência foi grande. O amigo do meu pai entretanto tornado Secretário de Estado, trouxe consigo um bispo, que elaborou um discurso fúnebre solene, que terminou com a frase que mandei gravar na lápide, que só ficou pronta, uns dias depois.
“O que a vida separou, a morte uniu”.
Mais uma escolha pouco popular. A minha avó achou de mau gosto. O meu avô de inaudito. O meu tio, na sua inabilidade criativa, repetiu a acusação. Era uma falta de respeito. Era um acto irónico, de humor negro, uma desconsideração pela alma dos dois mortos, como me fez saber a minha outra avó. De novo, ignorei os protestos. Isso e o facto de todos terem chorado muito, ao contrario de mim, o que me valeu nova admoestação, desta vez de uma velha que mal conhecia e se dizia tia da minha mãe. Fosse. A verdade é que os protestos desapareceram nesse mesmo dia, e com eles, os seus protagonistas, pois à excepção do feito no meu dia de anos, nem um telefone mais recebi, quanto mais visitas a casa. No cemitério, também não os vi por lá e a esse foi com alguma frequência, principalmente nos meses que se seguiram ao enterro. Existe naquele cemitério, uma paz despojada que se torna bastante tranquilizadora. Talvez tenha sido isso que me atrai lá. Isso, ou o processo de luto inacabado, pela ausência de choro, que só acabou por chegar um mês depois. Mas mais que por eles, chorei por mim.

Não sei se existe alguma forma de nos prepararmos para um facto irreversível. Sei que aquela morte despertou em mim uma sensação de tempo perdido, como se todo o tempo passado fora daquilo que queria, fosse um desperdício. Contra a morte, só a criação triunfa e apenas temporariamente. Custa-me pensar que entre eles, os meus pais, esse triunfo tenha sido tão precário. No final, o que restou foi a herança silenciosa da minha educação.
O universo dos meus pais foi o da supremacia do sentimento, contido pela razão e adaptado à educação. Não é de estranhar, pois embora possa parecer um resquício de romantismo tardio, a verdade é que época e o mundo em que se apaixonaram, estava cheio de convenções rigorosas e compromissos inquebráveis, pelo que a ideia era revolucionária: implicava um destino grandioso para o amor, o de superar todas as proibições para se realizar plenamente. O que disso para mim passou, não foi mais que uma cicatriz, um eco de uma fé não cínica, crente numa promessa inocente de amor.
Quando cresci, já essa promessa estava desactualizada, uma vez que as proibições tinham perdido o seu sentido, à luz do individualismo racional, que cobriu de ridículo as expressões sentimentais. Já ninguém acredita num amor puro, nem valoriza o acto altruísta de dar sem receber. A necessidade urgente de nos esvaziarmos dos factos negativos da vida, tirou qualquer sentido ao acto de sofrer. Mas como este não desapareceu, nem a necessidade de afecto, carinho e apreço, o que se gerou foi uma epidemia de depressões, que ao invés de funcionarem como alerta perante a impossibilidade de negar essa componente tão essencial da nossa existência, sufocaram a fragilidade sob o manto imperativo do optimismo. E eu, sujeito à pressão dos pares, enraizei o meu legado romântico numa reminiscência inconsciente. A reminiscência do livre afecto, da dependência emocional, da crença em algo ou em alguém, que jamais nos deixará abandonados à nossa solidão. A natureza deu-nos o poder e o direito de amar e ser amado como um fim e não como um meio. Acho que foi desse direito que quis abdicar, quando eles me morreram.
O problema é que o fim da possibilidade não apagou em mim o desejo de ser importante, mesmo sabendo-o improvável. Deixar de acreditar no conforto insuperável de se sentir amado e desejado, é o mesmo que evitar sentir, só para fugir à hipótese da dor. Fazê-lo, para mim, não é significou o fim da necessidade de procurar conforto perante as minhas vulnerabilidades. Apenas suscitou em mim a proibição de o fazer, em favor de uma hipotética preservação. O que na verdade, não resultou muito bem.
Disse muitas vezes a mim próprio que não devia depender de ninguém, que cada um deve seguir o seu próprio caminho, não fosse isto soar a uma mágoa que não queria sentir, a uma vingança que não fazia sentido perpetrar, a uma ruptura destinada apenas a chamar a atenção. Disse muitas vezes a mim próprio que devia ser lúcido para ver alem da cegueira da emoção, mas na verdade, tornei-me escravo dela, como se calhar sempre fui, preso num organismo que não está preparado para viver em estados neutros, pelo que o medo de dar sem receber, que me levou a procurar espaços do qual mais ninguém fazia parte. A consequência, foi ver-me a esquecer algo sem o qual deixava de fazer sentido viver. Tudo, para poder continuar a fazê-lo. Senti-me perdido. É certo que todos temos de aprender a viver sem algo que queremos, mas a privação do objecto, não nos liberta da fraqueza de, no nosso íntimo, nos sabermos totalmente vulneráveis, tanto à sua ausência, como à sua presença.
A solidão, foi a única resposta possível. A impotência de um sentimento digno, perante um problema maior. A aceitação da dor como da iminência da morte. O fim, repleto de isolamento, como um ser invisível que sofre em abstracto, desesperado perante uma luta que sabe não poder vencer.
Vi muitas vezes essa impotência no rosto dos velhos, nos gestos de quem se abraça, dela, a espreguiçar-se solta, livre, esticada na praia, na cama, no sofá. Vi-a na preocupação que se manifesta no carinho. Na despedida. Na certeza que há gestos e palavras que serão os últimos. Na incerteza dos acontecimentos terríveis e autênticos, no descontrolo dos momentos fantásticos e inesquecíveis. Ouvi-a, nas palavras segredadas em cumplicidade de ouvido, na celebração de um reencontro, no olhar por detrás das cortinas, na exposição de uma declaração, na manifestação de uma vontade profunda, honesta, irredutível, na beleza que se mostra, nas coisas simples que se vão vivendo.
Custou-me ficar sem essas coisas, sem as tais que transformaram a minha vida em algo mais que simples factos sucedâneos. Essas coisas, as tais, que não existiam sem haver coragem para assumir a impotência. A dignidade ferida de quem enfrenta só, de rosto descoberto, a revelação daquilo que se é. Uma revelação cuja força para assumir, perdi com o desaparecimento dos dois únicos seres que me tinham feito acreditar na possibilidade de ser forte na revelação da minha fraqueza. Foi tudo isso que me fez sentir tanto a falta deles. Foi isso, mais que qualquer outra coisa, que me levou às lágrimas.
Por isso chorei. Finalmente. Sozinho. Em casa.
A vida tem o dom de nos destruir emocionalmente. Esforçamo-nos por encarar com positivismo construtivo as incidências da mesma, dizendo que crescemos, ganhamos maturidade, perdemos as ilusões.
Mas na verdade, tudo não passa de uma destruição gradual e compulsiva.
A contradição, deixou-me vulnerável à minha condição.
Sem outra solução, demiti-me.

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